Fábio Gusmão acompanhou a saga da mulher que registrou tráfico em Copacabana e inspirou filme com Fernanda Montenegro
O nome verdadeiro de Vitória era Joana Zeferino da Paz, revelado após sua morte, aos 97 anos. Ela usou a identificação falsa para se proteger após ter filmado o tráfico ao lado do seu apartamento, em Copacabana, no Rio de Janeiro, durante dois anos.

Joana Zeferino da Paz, quando era identificada como Vitória, no apartamento em Copacabana, e o jornalista Fábio Gusmão.
Foto: Arquivo pessoal
Cansada de denunciar o tráfico de drogas a 150 metros do seu apartamento em Copacabana, área turística do Rio de Janeiro, uma senhora resolve comprar uma câmera e filmar a movimentação criminosa na Ladeira dos Tabajaras. Era 2003.
O jornalista Fábio Gusmão soube da história, aproximou-se da idosa, que insistia em aparecer com o nome real na imprensa. Para protegê-la, o jornal Extra decidiu usar um codinome, Vitória, com o qual foi identifica em reportagens publicadas em 2005.
As 22 fitas gravadas durante dois anos pela corajosa moradora levaram à expedição de 30 mandados de prisão e à detenção imediata de 13 bandidos e dois policiais militares. Vitória ingressou no Programa de Proteção à Testemunha e passou 17 anos sem poder revelar o verdadeiro nome, Joana Zeferino da Paz.

Joana Zeferino da Paz usando a câmera comprada em 12 prestações e com a qual filmou dois anos do tráfico.
Foto: Arquivo pessoal
A identidade real só veio à tona quando ela morreu, em 2023, em Salvador, aos 97 anos. Além das reportagens, o jornalista Fábio Gusmão escreveu um livro, que inspirou o filme Vitória, com Fernanda Montenegro.
Nesta entrevista exclusiva, o repórter conta detalhes da relação com a fonte, revela o que foi feito do apartamento, o resultado do processo da moradora contra o Estado e diz que, hoje em dia, a corajosa Joana Zeferino da Paz “estaria indignada, cobrando das autoridades”.
Você tem receio de que, ainda hoje, alguém possa querer se vingar de você?
Não. Dois PMs me processaram e perderam. A esposa de um deles foi no lançamento do meu livro, mas não teve nada além disso, vinte anos depois.

A presença de menores de idade indignava mais ainda a moradora que gravou 22 fitas com o movimento do tráfico.
Foto: Reprodução
A Ladeira dos Tabajaras continua sendo local estratégico para o tráfico em Copacabana?
A Ladeira dos Tabajaras e o Morro dos Cabritos pertencem a uma mesma facção, desde sempre, o Comando Vermelho. Quando a gente fala de uma facção que pretende ter lucro, estar num cartão postal do Rio de Janeiro dá mais lucro ainda.
Qual foi o principal motivo para dona Joana filmar o tráfico?
Ela movia uma ação judicial por danos morais e materiais e um coronel, quando falou no processo, disse que a polícia fazia operações e que a moradora tinha que provar aquilo o que estava falando, que eles não combatiam o tráfico no local.
Ela tinha feito muitas denúncias antes do processo?
Ela tinha um histórico de denúncias. O processo foi mais um capítulo da busca de todos os poderes do Estado para fazer valer o direito de uma cidadã, de viver numa área em que o crime organizado não ditasse as regras, e que aquilo não a afetasse financeiramente, desvalorizando o imóvel.

Do lado esquerdo, a sigla “CV” identifica área dominada pelo Comando Vermelho na Ladeira dos Tabajaras, em Copacabana.
Foto: Reprodução
Dona Joana é uma precursora do uso de celulares para denúncias?
Sim, na época era muito incipiente, apesar de existirem alguns celulares que faziam filmagem, não tinha mesma qualidade e potência que tinha uma câmera Panasonic, comprada em 12 prestações.
Você é a favor ou contra o uso de câmeras corporais por policiais?
A favor porque garante qualidade na prestação do serviço. Se você tem a consciência de que está sendo monitorado, vai ter mais zelo. Ao mesmo tempo, pelo lado dos policiais, qualquer tipo de denúncia falsa pode ser esclarecida.
Como dona Joana estaria vendo o Rio de Janeiro hoje?
Eu acho que ela estaria indignada, como ela sempre se mostrou. Estaria cobrando das autoridades efetividade no combate e, se desse mole, ela ainda filmaria e faria mais denúncias.

Em determinada ocasião, um tiro atingiu o apartamento de Joana Zeferino da Paz. Ela não desistiu e continuou gravando.
Foto: Reprodução
Quando dona Joana saiu do apartamento, ela o vendeu ou abandonou?
A ação que ela moveu contra o Estado teve resultado?
Ela ganhou em primeira instância, só que o Estado, obrigatoriamente, tem que recorrer. Na segunda instância ela perdeu por unanimidade, e depois foi perdendo em todas as instâncias. Ou seja, ela nunca ganhou a indenização.
Gostaria que comentasse a polêmica sobre Fernanda Montenegro, branca, interpretando uma mulher negra.
Testemunhei, por várias vezes, o desejo de dona Joana ser interpretada pela Fernanda Montenegro. É querer retirar dela o desejo, em vida, de ser representada pela maior atriz brasileira, e uma das maiores atrizes do cenário mundial.
https://www.terra.com.br/diversao/entre-telas/ela-filmaria-e-faria-mais-denuncias-diz-jornalista-que-cobriu-caso-do-filme-vitoria,442ea40b88c6677a0da37f2f0e1a49aetwrla36z.html?utm_source=clipboard