
Existe uma sensação peculiar que se instala com o passar dos anos e a vertiginosa mudança do mundo ao nosso redor: a de se tornar um estranho na terra onde se fincou raízes. Em Porto Velho, vivi a vida, criei família e fui parte ativa de transformações que moldaram o que hoje é Rondônia. Minhas memórias não são apenas lembranças; são testemunhos vivos. Assisti à transição do Território para Estado, testemunhei a saga da pavimentação da BR-364, e vi nascer municípios que hoje pulsam, como Ariquemes, Cacoal, Espigão do Oeste, Rolim de Moura, e até mesmo Mirante da Serra, que era apenas uma linha próxima de Ouro Preto. Tive participação na caravana que foi aos portos do Pacífico para pedir a construção da Bioceânica, vi as usinas de Samuel, Santo Antônio e Jirau serem inauguradas viajei pela já extinta BR-319 rumo a Manaus por terra-marcos de uma época de pioneirismo e desbravamento.
Como professor e escritor, tive o privilégio de conhecer e interagir com ícones de Rondônia e do Brasil, pessoas como Humberto da Silva Guedes, Capitão Silvio Gonçalves, Teixeirão, Milton Santos, Paulo Vanzolini, Darcy Ribeiro-só para citar alguns. Para alguém que, como todo velho, vive de passado, essas histórias são relíquias minhas que pouco interessam. O que passou, passou. Não se vive de passado. O fato insofismável, todavia, é que Rondônia mudou, e Porto Velho, mais ainda. Houve um tempo em que eu me considerava uma pessoa bastante conhecida. Não se entrava em um avião, ou mesmo em qualquer lugar movimentado da cidade, sem cumprimentar uma boa quantidade de conhecidos. Até uns dois anos atrás, essa familiaridade ainda persistia: entrar em um local e ser abordado por três ou quatro pessoas que, em sua maioria, eram ex-alunos, conhecidos de palestras ou simplesmente pessoas que me identificavam. Eu conhecia as autoridades, suas origens; havia uma conexão social palpável.
Uma parte dessa mudança, talvez, seja minha, por ter me afastado um pouco dos microfones e câmeras. No entanto, o motor principal é a velocidade da transformação da cidade. Até mesmo os detentores de cargos mudam com uma rapidez que só os mais envolvidos conseguem acompanhar. Muitos entram e saem da esfera pública sem sequer tempo de se tornarem minimamente conhecidos
Esta percepção atingiu um pico na noite de ontem, em um jantar. Fui ao restaurante Cuzco, de comida peruana, na antiga Arigolândia, um local que já abrigou o tradicional "Caravela do Madeira" do Paiva, um nome que ressoava em Porto Velho, que estava completamente lotado, talvez, mais de duas centenas de pessoas. O objetivo era menos a comida e mais a música de Priscila e Carlos Guere, que com seu ritmo latino mantêm a noite acesa.
O verdadeiro choque, contudo, não foi a excelente música (embora um pouco alta para os meus ouvidos, por conta da acústica do local), mas sim a ausência de conhecidos que me envolveu me fazendo, pela primeira vez, em muitos anos, me sentir como se estivesse fora da cidade. Não reconheci ninguém. Nenhum garçom, nenhum atendente, nenhum cliente. Em um minuto, a ficha caiu: eu sou um desconhecido em Porto Velho. Nenhuma das pessoas presentes, tirando os músicos, me conhecia ou me era familiar.
Como tudo na vida, esse novo status de desconhecido tem seu lado bom e seu lado ruim. O lado bom foi a liberdade: ninguém me incomodou, uma privacidade completa. Desfrutei de uns chopes e de uma boa música sem a necessidade de conversas forçadas ou a obrigação social de cumprimentos e salamaleques. Há um certo conforto em ser apenas mais um. O lado ruim foi o rompimento do vínculo, a confirmação silenciosa de que a Porto Velho que ajudei a construir e onde fui um rosto conhecido já não existe mais, pelo menos não da mesma forma. E também me veio a percepção de que isto deve também estar acontecendo com muitas pessoas mais antigas de Porto Velho: em suma, a vida, o tempo, a cidade nos engoliram e reduziram a nossa familiaridade. A grande verdade é que, agora, posso dizer sem medo de errar: sou quase tão desconhecido em Porto Velho quanto em Fortaleza, minha cidade natal. É o preço da modernidade, da migração incessante e do crescimento acelerado que, embora traga progresso, leva consigo a intimidade da pequena (ou média) cidade para substituí-la pela indiferença da metrópole. Resta-nos, a nós, os guardiões do passado, equilibrar a nostalgia com a aceitação dessa nova e desconhecida paisagem.