A BR-364 transformou a Amazônia, provocando migrações em massa e fundando cidades em meio à floresta.

Moradores da Reserva Aroeira foram trazidos para cumprimentar Juscelino. Foto: Manoel Rodrigues
Por Júlio Olivar – julioolivar@hotmail.com
4 de julho de 1960. Vilhena sequer era um povoado — apenas um ponto esquecido no extremo de Porto Velho, a 700 km da sede do município. Na tarde daquela segunda-feira, o presidente Juscelino Kubitschek chegou a bordo de um avião C-47 da Força Aérea Brasileira, vindo de Cuiabá. O pouso se deu em uma pista asfaltada de 1.450 metros, cercada de lama, junto à BR-29, futura rodovia BR-364. Ali, a FAB instalava uma base estratégica para apoiar a ocupação e o desenvolvimento da região — hoje, 65 anos depois, transformada na cidade de Vilhena, com 110 mil habitantes, segundo maior IDH e terceiro maior PIB de Rondônia.
Rondônia era quase vazia: menos de 50 mil habitantes oficialmente registrados. Tropas flutuantes de garimpeiros, seringueiros, tropeiros e indígenas viviam à margem das estatísticas. A real dimensão dos povos originários era ignorada — e muitos consideravam sua presença um “entrave” ao avanço. Cortados pela nova estrada e abandonados pelo desprestigiado SPI (antecessor da Funai), os indígenas pouco importavam à lógica desenvolvimentista do governo federal.
As poucas referências eram o rústico Posto Telegráfico Álvaro Vilhena, os seringais e as aldeias — símbolos “exóticos” do Brasil profundo. Enquanto o país possuía emissoras de televisão e assistia à corrida espacial, em Vilhena o progresso passava devagar, em Código Morse, em sinais de rádio difíceis de serem sintonizados e lombos de burro, que transportavam borracha até o porto improvisado no Rio 12 de Outubro, batizado pelos Nambiquara como Walukatuyausu — o “Rio da Paca”.
Entre afetos e sorrisos – Em seu diário, o presidente registrou sua admiração pelos artefatos dos nativos de Vilhena. Enquanto ele se encantava com o contato e era chamado de “grande pai” pelos indígenas, sua esposa e filha (logo atrás na imagem) permaneciam alheias à cena. Foto: Acervo de Anderson Leno / Colorização: Luís Claro

Até o final da década de 1950, Rondônia possuía uma frota automobilística extremamente modesta. Nos dois únicos municípios existentes na época — Porto Velho e Guajará-Mirim — havia apenas 235 veículos, divididos em: 53 carros de passeio, 21 táxis, 121 caminhões, 10 ônibus, 19 motocicletas e 11 tratores. O território só superava, em quantidade de veículos, Roraima, com 103 unidades, e Fernando de Noronha, com 34.
No cenário nacional, o Brasil também era um país de poucos automotores. Na virada da década de 1960, havia apenas 1 milhão de veículos registrados, em uma nação ainda majoritariamente rural, movida a cavalos, bois e ferrovias que cruzavam parcialmente o território. Ao final daquela década, o país alcançaria 37 mil km de rodovias, das quais apenas 13.200 km eram asfaltadas — sendo mais da metade delas construídas durante o governo Juscelino Kubitschek.
Nenhum veículo havia chegado a Vilhena. Embora o governo tivesse aberto uma estrada para a localidade nos anos 1940, ela foi logo abandonada e tomada pelo mato. No início de 1960, um caminhão Ford F-600, com motor de 167 HP, adquirido pelo Governo do Território, partiu de São Paulo até Vila Bela da Santíssima Trindade e, de lá, seguiu por via fluvial, através do Rio Guaporé, até alcançar Guajará-Mirim. Era impensável, à época, atravessar os caminhos da selva entre Vilhena e Porto Velho com um veículo motorizado, mesmo havendo os caminhos do telégrafo.
Rondônia se locomovia por seus rios. E, longe de Vilhena, o transporte terrestre dependia da antiga e decadente ferrovia de maria-fumaça que ligava os rios Mamoré e Madeira. A abertura de uma rodovia era, portanto, crucial para romper esse isolamento.
A BR-364, embora oficialmente lançada com a ordem de serviço em 1960, já havia sido projetada anteriormente e sua construção avançava até Barracão Queimado, hoje Comodoro (MT). A obra seguiu em ritmo acelerado, viabilizada pela vontade política do presidente, pelo apoio do DNER (Departamento Nacional de Estradas de Rodagem) e pela atuação da empreiteira Camargo Corrêa, que liderava o consórcio responsável pelas frentes de trabalho. Naquele tempo, os entraves burocráticos eram menores.
Em quatro meses, algo impensável hoje, em que nem mesmo uma licitação seria concluída, as máquinas e os homens já avançavam no traçado. Juscelino não se intimidava com possíveis questionamentos futuros na justiça, e Sebastião Camargo, proprietário da construtora, assumiu o desafio do trecho mais difícil: entre Barracão Queimado e Pimenta Bueno.

Travessia perigosa. Nas imediações da futura Vila Vilhena, operário da Camargo Corrêa tenta a sorte em ponte improvisada. Foto: João Alves Nogueira
Foi aqui, em meio ao cerrado, cercado por trabalhadores braçais, engenheiros, indígenas e autoridades, que JK hasteou a bandeira do Brasil, descerrou uma placa de bronze e derrubou simbolicamente a última árvore que marcava o trajeto da rodovia — ainda um estradão de terra, mas já prenunciando uma das maiores ondas migratórias da história brasileira. A pavimentação só viria em 1984, no governo de João Batista Figueiredo, dois anos após a instalação do Estado de Rondônia.
Na época, milhares de trabalhadores arregimentados pelas empreiteiras atuavam na abertura do trecho conhecido como Brasília-Acre. A imprensa do Sudeste a apelidava de “Rodovia das Onças”. Além dos migrantes vindos do Sudeste e Nordeste, indígenas também participaram das frentes de trabalho, contribuindo na missão de integrar Rondônia e Acre ao restante do país.
Foi somente a partir da BR que surgiu o núcleo urbano de Vilhena, transformado em distrito subordinado a Porto Velho em 1969 e elevado a município em 1977. Ao longo do traçado, outras cidades nasceram ou se consolidaram: Pimenta Bueno, Cacoal, Presidente Médici, Ji-Paraná, Ouro Preto do Oeste, Jaru, Itapuã do Oeste, Ariquemes e Candeias do Jamari, além dos muitos “patrimônios” — como eram chamados os povoados surgidos em decorrência da rodovia, vinculados aos municípios principais.
Durante a década de 1970, a migração se intensificou com o início do Ciclo da Madeira, promovendo a instalação de centenas de serrarias e madeireiras que só foram viáveis graças à BR.
JK agiu com a urgência de quem parecia antever que não voltaria ao poder. Em 1964, o golpe civil-militar interromperia o regime democrático, e o Brasil só voltaria a eleger presidentes em 1989 — quando Juscelino já havia falecido há 13 anos.
“SÓ A POESIA TEM O PODER DE CRIAR COISAS GRANDES”
No palanque improvisado em Vilhena, JK discursou com lirismo e visão de futuro: “Tínhamos que realizar obras que representassem um pouco de sonho, um pouco de poesia, porque só a poesia tem o poder de criar coisas grandes.”
E completou: “Estamos atrasados um século em relação aos Estados Unidos. Mas marchamos mais rápido.”
Ele via em Vilhena o que vira em Brasília: um núcleo nascente, de paisagem parecida e povo destemido. Lá, eram candangos. Aqui, sem nome definido, homens e mulheres abriram com as mãos a clareira onde surgiria a cidade.
JK enxergou longe. E, com poesia, mudou para sempre o mapa da Amazônia.
ENTRE OPERÁRIOS E INDÍGENAS
A pedido do DNER (Departamento Nacional de Estradas de Rodagem), os indígenas que participaram da obra da BR-29 foram vacinados contra febre amarela e conduzidos à solenidade pela liderança local do SNI, o chefe Afonso Mansur. Hospedaram-se no Posto Fiscal 3, sob os cuidados da Comissão Construtora da rodovia, até a chegada do presidente Juscelino Kubitschek. Para o deslocamento ao local do evento, foram providenciados caminhões.
Alguns indígenas, que vieram diretamente das aldeias e não haviam participado da construção da estrada, presenciaram com encantamento o movimento das máquinas — uma realidade totalmente nova para muitos deles. Um dos relatos mais emblemáticos veio do Nambiquara Lito Sabanê, publicado no jornal Folha da Manhã:


O perímetro urbano da rodovia em Vilhena. Fotos: Júlio Olivar/Acervo pessoal
“O que eu mais gostei foi de ouvir o ronco do caminhão, de ver o movimento das máquinas. O homem com o colar [referência à gravata de JK] derrubou a árvore com a máquina que eu gostei. Eu gostei disso. Ele andou na árvore caída”. Muitos Nambiquaras, habitantes das vertentes de 16 rios, já estavam pacificados há cerca de meio século.
O presidente chegou a Vilhena acompanhado de familiares e figuras centrais da história brasileira: Israel Pinheiro, engenheiro civil e primeiro prefeito de Brasília; Filinto Müller, engenheiro e então vice-presidente do Senado; Regis Bittencourt, diretor-geral do DNER; Carlos Pires de Sá, engenheiro e um dos diretores do DNER.
Este último, Carlos Pires de Sá, foi o único da comitiva a ter seu nome eternizado na geografia local: o Rio Pires de Sá corta a cidade de Vilhena. Natural de Sousa (PB), Pires de Sá nasceu em 1921, formou-se engenheiro civil em 1947, pela tradicional Escola Nacional de Engenharia, no Rio de Janeiro. Chegou a Vilhena aos 39 anos e faleceu no Rio, em 2016. Foi o responsável direto pelos estudos de viabilidade técnica da BR-29 e esteve presente em diversas etapas da obra. Também foi ele quem autorizou a construção do aeródromo provisório onde JK pousou.
Sobre o autor
Júlio Olivar é jornalista e escritor, mora em Rondônia, tem livros publicados nos campos da biografia, história e poesia. É membro da Academia Rondoniense de Letras. Apaixonado pela Amazônia e pela memória nacional.
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